Este texto é baseado na resenha do seguinte artigo: Papageorgiou, V., Dewa, L.H., Bruton, J. et al. ‘Building bridges’: reflections and recommendations for co-producing health research. Res Involv Engagem 9, 113 (2023). Link para acesso: https://doi.org/10.1186/s40900-023-00528-0 |
Contextualização
A pesquisa coproduzida corresponde a uma parceria entre pesquisadores acadêmicos (chamados de “acadêmicos”) e pessoas com experiências e vida (chamados de “copesquisadores”), que contribuem com sua experiência em todo o ciclo da pesquisa. Isso incluir o trabalho conjunto para identificar questões de pesquisa, coletar e analisar informações, escrever publicações acadêmicas e apresentar os resultados ao público. Os copesquisadores podem não ter qualificações “formais” em pesquisa, mas sim percepções e experiências profundamente enraizadas em suas vidas cotidianas e histórias passadas.
No Reino Unido, o National Institute for Health and Care Research (NIHR) usa uma definição ampla de envolvimento público de “pesquisa sendo realizada” ‘com’ ou ‘por’ membros do público em vez de ‘para’, ‘sobre’ ou ‘para eles’ (nota Tina: é o que eles chamam de PPI, ou Patient and Public Engagement, na sigla em inglês). Lá, a pesquisa coproduzida estende o envolvimento para além das atividades de aconselhamento e orientação centradas no envolvimento do paciente e do público. Como resultado, a pesquisa coproduzida acaba representando uma abordagem mais justa e ética para realização de pesquisas significativas, que possibilitem a capacitação e inclusão, além de serem financiadas pelo público.
Essa abordagem de pesquisa às vezes é categorizada como pesquisa participativa. Esses termos são frequentemente usados de forma intercambiável e com outros tipos de abordagens para envolver pessoas com experiência vivida em pesquisa; os pesquisadores levantaram preocupações sobre o uso indevido do termo coprodupção. No artigo, os autores utilizaram o termo “pesquisa coproduzida” como uma abordagem para reconhecer e tentar abordar e desmantelar os diferenciais tradicionais de poder na pesquisa para facilitar a geração de conhecimento. A ideia por trás é que o conhecimento não pode ser hierárquico, mas também pode ser interseccional (ou estar relacionado a múltiplas identidades que as pessoas podem ter, por exemplo, em relação ao capacitismo, racismo, classe, educação, etc). A pesquisa coproduzida pode ser gratificante, mas também emocionalmente desafiadora tanto para pesquisadores acadêmicos quanto para pessoas com experiência de vida, especialmente quando envolve populações que já são socialmente marginalizadas.
Os autores consolidaram as lições aprendidas nesse espaço usando a metáfora da “construção de pontes” para compartilhar e refletir sobre as experiências no Imperial College London em três projetos coproduzidos. Os projetos, agora concluídos, consistiram em três equipes de copesquisadores:
- Pessoas que vivem com diferentes condições de saúde (incluindo HIV em colaboração com instituição de apoio ao HIV liderada pelo Positively UK)
- Deficiências de aprendizagem e autismo (em colaboração com a Heart n Soul)
- Jovens com experiência em dificuldades de saúde mental.
Alguns autores reconceitualizaram a coprodução como “ativismo silencioso”. Isso é pertinente nas pesquisas sobre HIV, deficiências de aprendizagem e saúde mental, em que os copesquisadores impulsionaram os avanços no tratamento, na assistência e nos serviços ao destacar a estigmatização e a marginalização sofridas pelas pessoas com experiência vivida.
Métodos
Desenvolvimento do trabalho colaborativo
Inicialmente foram identificados dois pesquisadores acadêmicos com ampla experiência em coprodução. Todos os participantes da pesquisa coproduzida se reuniram pela primeira vez como um grupo no outono de 2021 para desenvolver uma proposta de submissão para o National Centre for Research Methods (NCRM) e-Festival. Foi feito um workshop reflexivo on-line de 3 horas sobre coprodução em pesquisa. Em seguida, eles reuniram um grupo diversificado de seis co- pesquisadores para elaborar o workshop. Foram dois encontroes online (zoom) de 1:30 hora para uns conhecerem os outros, projetar e desenvolver os objetivos do workshop, as principais funções e responsabilidades, e explorar o que a pesquisa coproduzida significa para cada pessoa.
Os copesquisadores foram renumerados por seu tempo de preparação e tempo de apresentação conjunta no workshop, de acordo com as diretrizes do NIHR. As reuniões de planejamento foram facilitadas por uma pessoa e as discussões e ideias foram registradas usando o Google Jamboard, pois todos os projetos de pesquisa haviam usado com sucesso essa ferramenta como método de envolvimento. Foi durante essas reuniões que também criaram princípios compartilhados para a coprodução elaborados por copesquisadores da Heart n Soul e da Positively UK. Isso incluiu nove mensagens-chave a serem compartilhadas, resumidas em cinco princípios-chave de coprodução, que foram usadas para orientar discussões facilitadas com os copesquisadores sobre suas experiências de envolvimento em cada projeto. Após esse trabalho colaborativo inicial, três pessoas também usaram esses princípios para orientar o desenvolvimento de treinamento interno para pesquisadores do Imperial College sobre abordagens participativas:
- Seja gentil, divirta-se e aprenda com todos os outros
- Divulgue seu poder (o máximo que puder) para as pessoas
- A coprodução pode ajudá-lo a se conectar com pessoas que você conhece (relações existentes) e que ainda não conhece (novas relações)
- Permanecer conectado
- Usar linguagem clara/ simplificar as coisas
Ao reunir equipes que representam diferentes “experiências vividas”, é possível discutir e desafiar as próprias suposições sobre as práticas atuais de pesquisa coproduzida; por exemplo, a motivação por trás da pesquisa coproduzida e como tornar o processo mais acessível e equitativo. Para desenvolver este artigo, os autores compartilharam as histórias e reflexões (como citações) sobre a realização de pesquisas coproduzidas usando a metáfora de “construir pontes”.
Resultados
A pesquisa coproduzida consiste em “construir pontes”
Primeiro, os acadêmicos se aproximam e se conectam com grupos sub-representados na pesquisa devido a abordagens históricas de exploração ao trabalhar com pessoas com experiências vividas. Nesse processo, os acadêmicos tentam construir uma ponte entre as universidades e as pessoas que foram isoladas da prática da pesquisa. No entanto, essa etapa também pode ser inversa (comunidades ou indivíduos procuram os acadêmicos), geralmente quando já existem relacionamentos bem estabelecidos e confiáveis.
Depois que a ponte é construída, os acadêmicos e as comunidades têm acesso uns aos outros e começam a desenvolver relacionamentos. Por meio de uma troca de conhecimento, experiências, prática e treinamento, as pessoas com experiências vividas tornam-se co- pesquisadores e a linha entre acadêmicos e co- pesquisadores torna-se mais tênue. No entanto, essa troca só pode ocorrer se o caminho da ponte for pavimentado de forma nivelada para todos. Isso significa um caminho sem barreiras desnecessárias e com horário flexível para a travessia, para que todos possam acessar a ponte igualmente e caminhar em seu próprio ritmo.
“As pessoas têm diferentes tipos de maneiras de aprender” (Pino, copesquisador da Heart n Soul)
“Se você não está aprendendo, não está se engajando da maneira correta.” (Robyn, copesquisadora da Heart n Soul)
Sejamos acadêmicos ou pessoas com experiências vividas (ou ambos), todos somos “novos” em algumas coisas e especialistas em outras, e todos temos algo único para contribuir com a pesquisa coproduzida. Em nossos projetos, tínhamos experiência em artes (Heart n Soul), ativismo e mobilização comunitária (Positively UK) e em trazer novas perspectivas a partir de experiências vividas (jovens com dificuldades de saúde mental).
Uma experiência de aprendizado: compartilhar o espaço nos “decks” e interromper a dinâmica do poder
“Acho que tudo se resume a construir relacionamentos e ter a humildade de saber que somos todos especialistas e nos reunimos como especialistas, mas temos habilidades diferentes e aprendemos uns com os outros.” (Lindsay, pesquisadora acadêmica)
Para que a pesquisa coproduzida seja bem-sucedida, é preciso nos encontrar na metade do caminho nos deques da ponte. Se trabalharmos juntos em um espaço seguro e compartilhado, onde todos se sintam bem-vindos e confortáveis, todos nós teremos uma participação significativa para contribuir para o processo. Precisamos estar prontos para “largar a bagagem” e entrar em um novo espaço, que tire as pessoas de suas zonas de conforto. Nesse espaço, todos nós devemos estar prontos para negociar o poder:
“A ponte vermelha diz algo sobre o poder. Não estamos em um lugar ou em outro e compartilhamos um tipo de espaço liminar entre os dois.” (Jane, pesquisadora acadêmica).
Tanto os copesquisadores quanto os pesquisadores acadêmicos podem se sentir desconfortáveis em desafiar as estruturas tradicionais de poder. As tensões podem surgir devido ao desconforto que, inicialmente, pode ser mal interpretado como dificuldades interpessoais. Portanto, conhecer uns aos outros em um nível pessoal pode fortalecer a parceria; isso pode ocorrer por meio do compartilhamento de metas e aspirações do projeto e da pesquisa e da compreensão das motivações para o envolvimento. Reunir-se em espaços informais, incentivar discussões envolventes e “divertir-se” desempenham um papel importante.
Os pesquisadores acadêmicos devem desafiar as estruturas de poder que inibem a coprodução e defender os princípios da coprodução em seus grupos de pesquisa e instituições. Por exemplo, garantir que os copesquisadores sejam sempre pagos pelo seu tempo, tenham o equipamento disponível para se envolver e se comuniquem de uma forma que funcione para os copesquisadores como indivíduos e como equipe (email, texto, WhatsApp, telefone). A coprodução verdadeiramente acessível significa mudar uma abordagem de “tamanho único” para um modelo mais personalizado de trabalho em conjunto.
“Pontes instáveis”: navegando pelas emoções e pelo trabalho emocional
Quando a pesquisa coproduzida ganha impulso, o objetivo é “ser gentil, divertir-se e aprender uns com os outros”. No entanto, há obstáculos a serem superados ao atravessar a ponte que construímos. Na verdade, a ponte pode ir por água abaixo se não houver o reconhecimento adequado de que os pesquisadores estão expostos à incerteza. Isso é particularmente verdadeiro quando as ferramentas corretas não estão disponíveis para aceitar e gerenciar essa incerteza como parte da pesquisa coproduzida.
“Talvez seja uma série de pontes conectadas, na verdade, você já passou por uma, mas na verdade sua jornada ainda não terminou, e você encontrará outras pontes com outros desafios ao longo do caminho. Como um arquipélago” (Jane, pesquisadora acadêmica)
Embora a pesquisa coproduzida traga, na maioria das vezes, alegria e satisfação, compartilhar experiências com outras pessoas pode ser emotivo ou “desencadeante” às vezes e pode afetar todos os membros da equipe; a ponte pode começar a ficar “instável”. Sentimentos de dúvida e frustração se misturam com sentimentos de esperança de tornar o mundo um lugar melhor para todos. Mecanismos adequados de proteção, apoio emocional e bem-estar precisam ser preparados tanto para o copesquisador quanto para os acadêmicos para garantir que a pesquisa permaneça significativa e ética. Isso também pode ser apoiado por meio de supervisão, orientação e treinamento disponíveis por pares e colegas.
“É claro que a proteção dos participantes e dos copesquisadores é fundamental na pesquisa sobre saúde mental, mas também é importante cuidar do acadêmico. Conversar com um colega que também é clínico e compartilhar as preocupações que tenho tem sido muito tranquilizador.” (Lindsay, pesquisadora acadêmica)
Se você intencionalmente “der espaço para que outras pessoas falem” e “ouvir como as pessoas se sentem”, então a conexão de cuidado entre as pessoas pode agir como “uma cola” ou “cimento”. Isso pode fortalecer a ponte e tornar o trabalho em equipe mais forte durante as inevitáveis “oscilações”; é necessário criar um espaço seguro para permitir que os sentimentos de dúvida e frustração sejam compartilhados. Conhecer uns aos outros em um nível emocional pode ajudar a fortalecer os laços da equipe. Ter um profissional treinado (por exemplo, conselheiro, trabalhador de apoio de colegas) como parte da equipe pode ajudar a solucionar quaisquer preocupações sérias e garantir que alguém esteja disponível para apoiar todos os envolvidos.
Os pesquisadores acadêmicos são todos treinados em pesquisa qualitativa. Essa disciplina centrada na pessoa nos equipou com as ferramentas certas para realizar pesquisas coproduzidas; por exemplo, escuta ativa, reflexividade, flexibilidade e reconhecimento das complexidades da criação do conhecimento. Em nossa essência, tanto os acadêmicos quanto os copesquisadores têm valores e abordagens de trabalho semelhantes (pessoas empáticas, atenciosas e gentis) com os copesquisadores, o que ajuda a desenvolver e manter a ponte.
Construir várias pontes no caminho
“Uma vez que a ponte [os relacionamentos] foi construída, então me senti mais como minhas experiências (anteriores) de fazer esse tipo de pesquisa (qualitativa) e, olhando para o futuro, é como a pesquisa que quero continuar fazendo. Portanto, foi uma passagem das experiências de pesquisa passadas para as aspirações de pesquisa futuras.” (Vas, pesquisador acadêmico)
Com a infraestrutura e o suporte adequados, os copesquisadores ganham confiança, o que significa que o cenário da ponte mudar. Há várias pontes e obstáculos a serem superados. A ponte inicial da pesquisa coproduzida se transforma em uma ponte que conecta uma equipe de pesquisa coproduzida a novas oportunidades, lugares e comunidades.
O objetivo da pesquisa coproduzida é que os copesquisadores desenvolvam a capacidade e apoiem o desenvolvimento das habilidades do copesquisador. Os copesquisadores têm um maior senso de propriedade e constroem pontes adicionais de forma independente. Por exemplo, vários copesquisadores de nossas equipes estão fazendo doutorado, trabalham no setor de saúde e assistência, apresentaram seu trabalho em conferências acadêmicas ou se envolveram em outros projetos comunitários. Os copesquisadores da Heart n Soul estão desenvolvendo uma abordagem radical para projetar serviços com pessoas com dificuldades de aprendizagem ou autismo.
“O motivo pelo qual somos bem-sucedidos é o fato de sabermos qual é o problema” (Pino, co- pesquisador da Heart n Soul)
“Minha experiência de envolvimento no projeto é que os copesquisadores trazem uma visão/perspectiva interna da pesquisa, e isso só pode ser uma vantagem para qualquer pesquisa.” (Wezi, copesquisador da Positively UK)
Conclusão
Os autores mencionaram que em todos os projetos eles precisam lidar com desafios semelhantes relacionados a recursos e tempo, navegando por estruturas de poder e processos institucionais que são frequentemente citados na literatura. E embora tenham usado a taxa de palestrantes dos organizadores da conferência para cobrir o pagamento dos copesquisadores dos projetos, isso não foi suficiente. Eles tiveram que “completar” o financiamento por meio de subsídios existentes. Um desafio adicional é o financiamento da coprodução da divulgação dos resultados do estudo, pois isso geralmente ocorre muito mais tarde do que o financiamento do projeto de pesquisa permite.
A transparência na tomada de decisões, a inclusão e a equidade de oportunidades são fundamentais para garantir que a pesquisa coproduzida também mantenha os padrões éticos e as boas práticas. Portanto, para garantir que a pesquisa coproduzida seja conduzida com alto padrão e ofereça o máximo de oportunidades e apoio a todos os envolvidos, os autores recomendam:
- Maior comprometimento dos financiadores com os recursos e flexibilidade na análise das solicitações de financiamento (por exemplo, fluxos de financiamento específicos para impulsionar a pesquisa participativa liderada por pesquisadores em início de carreira e grupos comunitários, bem como a remoção dos requisitos para que os pesquisadores tenham afiliações institucionais).
- Processos flexíveis de solicitação e revisão por comitês de ética para projetos participativos (por exemplo, emendas aceleradas após o envolvimento de copesquisadores para evitar atrasos desnecessários nos projetos).
- Uma maior ênfase na coautoria e nas perspectivas dos membros da comunidade por parte dos publicadores.
- Aumento da capacidade, dos recursos de treinamento e do apoio de órgãos profissionais para conduzir pesquisas coproduzidas.
Com base na crescente experiência dos autores, o objetivo é defender a pesquisa coproduzida como um método dentro da pesquisa em saúde pública e garantir que ela seja compreendida e valorizada no meio acadêmico. As comunidades de pesquisa em todo o mundo estão começando a tomar medidas para reacender a pesquisa coproduzida e, posteriormente, garantir que a igualdade, a diversidade e a inclusão sejam um foco central para todos na saúde, na assistência social e além. No entanto, ainda há um caminho a percorrer.
Os autores convidam os leitores para assistir a dois vídeos produzidos pelas equipes deles, para uma explicação mais criativa e envolvente da “pesquisa coproduzida” e de como ela pode ser alcançada.
Os links são:
- Heart n Soul at the Hub (pesquisa coproduzida com pessoas com autismo ou dificuldades de aprendizado)
- Vídeo de 2023: https://vimeo.com/639875163
- Por que coprodução? Reflexões de um estudo de pesquisa sobre HIV (com participação da autora deste estudo)
- Vídeo de 2022: https://www.youtube.com/watch?v=MvyKA3k5J9o