QUINTA
CIENTÍFICA

DIA 20 Julho

ATS de quê? Reformulação por meio da inclusão de perspectivas dos pacientes nos processos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS)

ATS de quê? Reformulação por meio da inclusão de perspectivas dos pacientes nos processos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS)

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Este texto é baseado na resenha do seguinte artigo: Gunn, C. J., Regeer, B. J., & Zuiderent-Jerak, T. (2023). A HTA of what? Reframing through including patient perspectives in health technology assessment processes. International Journal of Technology Assessment in Health Care, 39(1), e27. https://doi.org/10.1017/S0266462323000132

Contextualização

Apesar da grande ênfase dada à inclusão das perspectivas dos pacientes nos processos de avaliação de tecnologias em saúde, especialmente nos últimos anos, e de forma global, há ainda questões não respondidas, por exemplo como integrar os insights dos pacientes ao longo do processo de ATS. Ao mesmo tempo em que a ATS deve assegurar a qualidade científica tradicionalmente feita, por meio de avaliações de estudos publicados, de alta qualidade, sobre eficácia clínica, custos e avaliações econômicas, ainda são pouco explorados os mecanismos pelos quais a evidência trazida pelos pacientes pode ser incorporada a esta avaliação e em seus diferentes estágios.

Este artigo faz uma análise qualitativa de documentos institucionais em quatro países com agências de ATS, além de entrevistas com organizações de pacientes, profissionais de ATS, representantes da indústria, complementado por observação do processo de ATS em um dos países.

Introdução

Evolução da ATS em direção à avaliação abrangente de evidências

As discussões recentes sobre ATS têm se concentrado na necessidade de tornar as formas de avaliação mais voltadas para os impactos de mundo realI das tecnologias de saúde. Essas discussões apontam para uma gama de diferentes direções que os processos de ATS podem seguir, a fim de garantir um acesso sustentável aos cuidados de saúde diante das mudanças no cenário de evidências em saúde.

Uma estratégia para alcançar esse objetivo é promover a inclusão de diferentes perspectivas e a participação de diversos grupos de interessados – com especial destaque para a contribuição dos pacientes na ATS. Algumas das discussões enfatizam  que a incorporação das perspectivas dos pacientes ao longo do processo de ATS resulta em avaliações de evidências mais relevantes e robustas, contribuindo assim para uma tomada de decisão de melhor qualidade. O Grupo de Interesse HTAi para Envolvimento de Pacientes/Cidadãos na ATS destaca múltiplas razões para a inclusão dos pacientes nesse processo, tais como: 

  • Legitimidade (do processo); 
  • Igualdade (envolvimento dos afetados) e equidade (compreensão das necessidades diversas);
  • Relevância (robusta, bem-informada).

Enquanto isso, o papel do envolvimento dos pacientes (e do público) tem sido reconhecido internacionalmente como um elemento importante da ATS. A recente regulamentação da União Europeia sobre ATS  solidificou o compromisso de incluir a contribuição dos pacientes como parte da expansão da colaboração na ATS. A regulamentação afirma que “especialistas externos … incluindo pacientes afetados pela doença” devem fornecer contribuições às avaliações para“garantir que o trabalho conjunto tenha a mais alta qualidade científica”.

A participação de pacientes em diferentes estágios da avaliação é vista como uma abordagem importante para a inclusão direta das perspectivas dos pacientes na ATS. Várias iniciativas internacionais têm se envolvido no desenvolvimento de mecanismos para estabelecer o envolvimento dos pacientes como parte integrante da ATS. Na Europa, especificamente, após a regulamentação da ATS, a Rede Europeia para ATS (EUnetHTA) busca solidificar ainda mais o envolvimento dos pacientes em atividades e serviços colaborativos de ATS. Um grupo de trabalho da EUnetHTA tem como objetivo desenvolver orientações “para a interação e envolvimento de representantes de pacientes” em suas consultas conjuntas e avaliações (nota de Tina: Guia para interação com representantes de pacientes, profissionais de saúde outros especialista disponível aqui). Devido ao compromisso internacional com a participação de pacientes nos processos de avaliação, compreender como os obstáculos ao envolvimento dos pacientes podem ser superados será benéfico para a melhoria da prática geral da ATS.

Apesar do amplo reconhecimento da importância da participação dos pacientes no processo de ATS, estudiosos há muito tempo têm se preocupado com a forma como a contribuição dos pacientes – em suas diferentes formas – faz diferença no processo. Apesar de fazer parte da ATS há alguns anos, comentários recentes ainda falam da necessidade de orientações para incorporar o envolvimento dos pacientes na prática institucional da ATS.

Um conjunto crescente de esforços e iniciativas buscou conceitualizar o que constitui um envolvimento ideal dos pacientes na ATS em diferentes contextos. Alguns estudos empíricos examinaram os fatores que influenciam o envolvimento significativo e impactante dos pacientes no processo de ATS. Foi frequentemente relatado a falta de tempo disponível para os grupos de pacientes contribuírem durante os processos de avaliação, sendo um melhor apoio (financeiro), além de recursos, considerados essenciais para uma participação relevante. Autores destacam que a questão mais complexa é sobre os desafios de integrar o conhecimento dos pacientes nos “contextos institucionais e tradições intelectuais” que governam a prática da ATS. Isso geralmente se manifesta como dificuldades em integrar a contribuição dos pacientes – frequentemente conceituada na ATS como experiencial, incorporada e expressa por meio de histórias pessoais – juntamente com formas mais estabelecidas (por exemplo, clínicas e econômicas) de evidências. As múltiplas justificativas mencionadas para o envolvimento dos pacientes significam que os processos de avaliação frequentemente devem “se virar” com as contribuições fornecidas pelos pacientes. 

O discurso recente implica que a contribuição dos pacientes é importante para garantir a qualidade científica das avaliações da ATS. Se esse for o caso, isso tem implicações significativas para pensar em como dar espaço ao conhecimento dos pacientes na ATS, onde, de modo geral, evidências e conhecimentos apropriados são agregados em uma imagem geral da tecnologia em saúde para fornecer conselhos coerentes sobre as melhores opções para os formuladores de políticas. Até onde se sabe, com poucas exceções, há exemplos limitados de estudos que examinam, em detalhes empíricos, como os processos de ATS tentam “se virar” com o conhecimento dos pacientes na prática. Assim, percebe-se que há espaço para contribuir para o debate sobre o envolvimento dos pacientes na ATS por meio da exploração de que espaço é dado para a incorporação do conhecimento do paciente na avaliação dos resultados junto a outras formas de evidência e conhecimento. A próxima seção discute os métodos empregados para alcançar este objetivo.

Métodos

Contexto

Este artigo baseou-se em dados de um estudo comparativo qualitativo de quatro processos institucionais de ATS na Europa. O estudo combinou análise de documentos com entrevistas com profissionais de ATS, organizações de pacientes e representantes da indústria de tecnologia em saúde, em relação a processos de ATS nacionais e colaborativos, bem como observações durante uma estadia de três meses em uma agência de ATS em 2018.

Coleta

Foram realizadas entrevistas com dez representantes de ATS (trabalhando em uma agência de ATS ou como pesquisadores acadêmicos com experiência em condução de avaliações), seis representantes de organizações de pacientes e seis respondentes que trabalham na indústria de tecnologia em saúde. Os entrevistados estavam morando em quatro países da Europa Ocidental: Irlanda, Holanda, Noruega e Escócia. Os contextos dos países foram selecionados intencionalmente com base na história com avaliações de ATS, onde a contribuição dos pacientes desempenhou um papel importante.

As entrevistas exploraram o processo de ATS em cada contexto nacional e discutiram os desafios e oportunidades para o envolvimento significativo dos pacientes. Os documentos relevantes analisados incluíam relatórios e pareceres finais de ATS, diretrizes para a prática de ATS, incluindo o envolvimento dos pacientes, contribuições e modelos de evidências dos pacientes, além de outros documentos políticos ou comunicados à imprensa relevantes relacionados à ATS nos contextos dos países selecionados.

A coleta e a compreensão inicial dos dados foram complementadas por meio de observações feitas durante esse período. Isso incluiu discussões com a equipe do instituto anfitrião e observação não participante das reuniões internas do instituto (n = 6), com anotações feitas ao longo do processo.

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas. Todos os entrevistados deram consentimento oral e escrito para o uso dos dados da entrevista antes de sua participação. Qualquer citação direta dos entrevistados é anonimizada para garantir a confidencialidade. Uma isenção formal para aprovação ética foi obtida por meio da ferramenta de autoavaliação ética da Faculdade de Ciências da Vrije Universiteit Amsterdam.

Análise

Após uma rodada inicial de programação para organizar os dados, uma segunda fase de programação axial foi realizada para desenvolver categorias e suas relações (isso significa dividir os dados qualitativos por temas em comum). Os resultados observados foram comparados com os conceitos que emergiram das entrevistas iniciais e da análise documental, com sua relevância verificada com os profissionais da área e buscas por evidências que refutassem as conclusões. A análise foi teoricamente orientada por uma perspectiva de pesquisa em prática, que enfatiza os arranjos de trabalho específicos e as técnicas de trabalho científico integrativo, incluindo a cooperação entre diferentes perspectivas. A programação foi facilitada por meio do software Atlas.ti.

Durante as rodadas de análise de dados, os autores buscaram entender como diferentes aspectos contextuais poderiam desempenhar um papel na integração de diferentes tipos de conhecimento na ATS. Consideramos as variantes contextuais relatadas ao comparar diferentes avaliações, incluindo o tipo de tecnologias sendo avaliadas e o momento do envolvimento dos pacientes no processo de ATS. Ao fazer esses tipos de perguntas durante essa etapa, encontramos três situações exemplares específicas que fornecem insights sobre como o envolvimento e a integração do conhecimento dos pacientes acontecem de maneiras diferentes na ATS. Essas situações foram apresentadas como “cases” separados: em cada uma destacam-se os momentos-chave do envolvimento dos pacientes no processo de ATS. Esses cases específicos de envolvimento dos pacientes na ATS foram escolhidas como os mais ilustrativos dos temas que surgiram durante a codificação do material.

  1. O primeiro retrato é uma avaliação de um medicamento para um distúrbio sanguíneo raro que afeta o funcionamento dos rins. Aqui, o momento decisivo do envolvimento dos pacientes ocorreu de forma tardia no processo, durante a fase de avaliação após a análise das evidências disponíveis. 
  2. O segundo retrato foi a avaliação de um sistema de monitoramento contínuo de glicose para pacientes com diabetes mellitus tipo 1 e 2, e focamos no envolvimento dos pacientes ocorrido no início de uma avaliação de efetividade relativa. 
  3. O terceiro retrato é uma avaliação de opções para serviços de transplante de órgãos pediátricos de emergência. Aqui, o momento decisivo do envolvimento dos pacientes ocorreu durante a avaliação das evidências em andamento.

Os resultados desses cases foram então comparados com as categorias iniciais da análise de dados para refinar as interpretações. Os participantes que contribuíram para os cases foram contatados para verificar a precisão e relevância, sem solicitar adições ou alterações no manuscrito final.

Os resultados do artigo são a apresentação desses estudos de caso selecionados. É importante observar que o uso dos cases não tem a intenção de representar uma imagem dos resultados do envolvimento dos pacientes na ATS, mas sim sua função é encontrar e apresentar exemplos que forneçam insights específicos, ao mesmo tempo que nos ensinam algo sobre uma questão mais geral em jogo. Escolheu-se mostrar os resultados a partir desses três casos selecionados porque:

  • O contexto do envolvimento não deve ser evitado em sua análise – incluindo a tecnologia específica em avaliação, o estágio geral da ATS e os processos pelos quais as perspectivas dos pacientes foram coletadas e avaliadas na avaliação.
  • Isso mostra as diferentes maneiras pelas quais a presença de distintos conhecimentos tem implicações para a forma como os julgamentos são feitos sobre as tecnologias de saúde durante o processo de ATS. 

Resultados

Os casos selecionados apresentam um espectro de diferentes “tipos” de tecnologia e envolvimento dos pacientes. Cada um deles é um exemplo em que a recomendação final foi aprovar o reembolso da tecnologia de alguma forma, com os resultados de cada avaliação publicados como relatórios de ATS disponíveis publicamente.

Caso 1: medicamento para distúrbios sanguíneos raros (eculizumabe)

A avaliação de um tratamento para doenças genéticas raras e potencialmente fatais que causam distúrbios sanguíneos foi conduzida na Holanda em 2016 pelo Zorginstituut Nederland (ZINL), com os processos dessa avaliação sendo analisados em outro lugar. O foco foi na fase de avaliação, em que um comitê formado por especialistas de diferentes áreas, incluindo representantes de pacientes e clínicos, considerou o relatório final de avaliação para formular recomendações de reembolso da tecnologia. Essa fase deliberativa tem como objetivo explícito ponderar os argumentos resultantes da revisão de evidências científicas com argumentos éticos e sociais. Grupos de pacientes participam como especialistas no comitê deliberativo.

No contexto da avaliação, representantes de pacientes e clínicos sentiram que a via de tratamento do medicamento poderia ser diferente para muitos pacientes, que só necessitariam do tratamento com eculizumabe em circunstâncias de emergência, em vez de um regime de tratamento regular ao longo da vida. Juntos, esses representantes desenvolveram uma proposta alternativa em relação às diretrizes de tratamento do medicamento – especificamente seu protocolo de administração com critérios de início e término diferentes – e a submeteram ao comitê de avaliação. Esse protocolo alternativo proposto foi o “ponto focal” das deliberações entre o comitê envolvido na formulação do parecer com base na avaliação anterior das evidências. A razão incremental custo-efetividade (RCEI) foi calculada com base na diretriz de tratamento aprovada pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), que, naquela época, estabelecia que o tratamento deveria ser fornecido uma vez a cada duas semanas pelo resto da vida do paciente. Embora o RCEI calculado originalmente fosse considerado altamente desfavorável, o que significa que seria improvável que o reembolso da tecnologia pelo seguro público fosse recomendado, o comitê de avaliação decidiu recomendar condicionalmente o reembolso com base no protocolo alternativo de tratamento.

Referindo-se a este exemplo, um representante de uma organização de pacientes afirmou:

“Aqui a discussão de avaliação mudou porque o grupo de pacientes e os médicos trabalharam juntos […] esses são exemplos de como o envolvimento precoce das partes interessadas poderia ter tido um impacto totalmente diferente no processo de avaliação técnica.”

Embora isso possa ter levado ao mesmo resultado, essa resposta implica que o envolvimento dos pacientes na avaliação de eficácia teria impactado a avaliação inicial e os cálculos do RCEI antes desses ajustes que foram considerados necessários.

A decisão mudou porque a consideração do que consiste na terapia foi redefinida. A eficácia da terapia foi reformulada por meio de uma estratégia alternativa de administração, resultando em um RCEI mais favorável e, portanto, um melhor valor pelo dinheiro. 

Caso 2: sistema de monitoramento contínuo de glicose

Um sistema de monitoramento contínuo de glicose subcutâneo (CGM), para pacientes com diabetes mellitus tipo 1 e 2, foi avaliado na Noruega (Instituto Norueguês de Saúde Pública [Folkehelseinstituttet] – NIPHNO) um ano antes da Escócia (Grupo Escocês de Tecnologias de Saúde – SHTG). Ambas as agências de ATS realizaram avaliações de eficácia clínica e custo-efetividade da tecnologia. Ambas as avaliações compararam o CGM com o autoteste convencional de glicose no sangue.

No contexto norueguês, as perspectivas dos pacientes foram expressas em reuniões de escopo realizadas no início do projeto de avaliação. Essas reuniões têm como objetivo desenvolver e aprimorar a formulação de perguntas de avaliação. A abordagem padrão para delinear as perguntas das avaliações de eficácia utiliza a estratégia PICO (População, Intervenção, Comparação e Resultados). Nesse caso, a formulação dos critérios PICO foi realizada em colaboração com especialistas clínicos e uma organização nacional de pacientes com diabetes. Como o uso do CGM supostamente poderia reduzir ou eliminar a necessidade de múltiplas injeções diárias para monitorar os níveis de glicose no sangue dos pacientes, os representantes destacaram o efeito da dor experimentada pelos pacientes como um resultado importante para entender o impacto da tecnologia. Isso orientou a revisão das evidências da avaliação. No entanto, havia poucos relatos medindo a dor como resultado discreto, embora alguns estudos tenham registrado a dor como parte de eventos adversos do uso do CGM.

“[o problema] na verdade não era o relatório em si, era mais a forma de conduzir a ATS e as evidências disponíveis… isso tem a ver com a nossa tradição, costumávamos ser um tipo de instituto de evidências quantitativas, olhando para as intervenções eficazes, e para avaliar intervenções eficazes, temos esses ensaios clínicos randomizados como padrão-ouro.” (Pesquisador de ATS)

Essa observação identifica o problema como sendo a forma como os padrões de credibilidade das evidências são impostos na ATS, o que significava que pouco poderia ser confirmado sobre a questão da dor na época.

“A dor [do uso da tecnologia] foi considerada pelos pacientes como um resultado realmente importante. Mas não encontramos evidências para abordá-la, na verdade…”. (Pesquisador de ATS)

Como essa resposta sugere, o relatório final de avaliação incluiu o reconhecimento dessas questões que não puderam ser totalmente abordadas devido à falta de informações disponíveis.

Dito isso, a seção de “prioridades de pesquisa sugeridas” do relatório final norueguês recomendou que as atividades de geração de evidências futuras mensurem a dor (e seu efeito na adesão ao tratamento) como parte do impacto do CGM em comparação com o monitoramento convencional de glicose. Da mesma forma, o relatório final na Escócia encorajou pesquisas futuras a fazer uso de dados coletados nos registros eletrônicos de pacientes para “informar avaliações futuras” do CGM e de outras tecnologias similares. No geral, essas recomendações, influenciadas em parte pelo envolvimento dos pacientes nessas avaliações específicas em 2017/2018, têm como foco redefinir a definição de uma medida de resultado significativa para avaliações futuras de tecnologias de saúde relacionadas ao diabetes.

Caso 3: serviço de transplante de órgãos pediátricos

Em 2017, a Health Information and Quality Authority (HIQA), agência de ATS da Irlanda, foi solicitada a realizar uma “ATS rápida avaliando as opções de tratamento e transporte” para pacientes pediátricos de transplante de coração e fígado em situação de emergência. No momento da avaliação, crianças que necessitavam urgentemente de um transplante eram transferidas da Irlanda para um centro cirúrgico no Reino Unido por meio de ambulância aérea. No entanto, restrições em relação à capacidade dessa intervenção indicavam que este tipo de serviço de transferência, da forma como era feito, poderia não estar mais disponível no futuro.  Restrições de capacidade significavam que os arranjos atuais do serviço de transferência não poderiam mais estar disponíveis. O escopo da avaliação era “estabelecer as abordagens alternativas para fornecer tratamento ou transporte eficiente e sustentável para esses pacientes, e fornecer uma avaliação de alto nível das consequências clínicas, econômicas e organizacionais das abordagens alternativas para o tratamento ou transporte desses pacientes”.

A avaliação foi descrita como incomum, pois explicitamente excluiu uma análise de custo-efetividade devido à complexidade do serviço avaliado, considerando todas as opções possíveis como tendo um “impacto substancial no orçamento”.

Representantes de pacientes participaram de um comitê consultivo de especialistas – esse grupo era composto por especialistas de diferentes disciplinas e organizações, estabelecido para orientar o processo de avaliação e contribuir para as recomendações gerais de ATS. Entre outras coisas, o grupo consultivo era esperado para “fornecer orientação  [à agência de ATS] em relação ao escopo da análise [e] apoiar a equipe de avaliação durante o processo de avaliação, fornecendo opinião especializada”.

Os entrevistados observaram que a perspectiva dos pacientes, por meio da experiência pessoal, acrescentava detalhes ricos à interpretação de diferentes situações e, assim, à consideração de possíveis opções de transporte no grupo consultivo.

Um representante de uma organização de pacientes contou sobre um momento específico em uma reunião do grupo consultivo de especialistas durante a avaliação. O grupo (que incluía o entrevistado abaixo, bem como outros representantes de pacientes) estava discutindo as implicações de diferentes opções de transporte com a equipe de avaliação da ATS. Uma opção proposta envolvia o pai ou responsável dirigindo o paciente até o local da ambulância aérea atrás de uma escolta policial. Um representante mencionou o exemplo de outro pai que transportou seu filho para o local de transferência de emergência de sua casa por meio dessa opção. O representante transmitiu a experiência do pai ao grupo de especialistas, que envolvia dirigir em velocidades excessivas durante a madrugada. O pai considerou essa experiência extremamente angustiante. Embora o grupo tenha reconhecido a importância da história, havia preocupações em relação à extensão em que a gravidade dessa experiência específica poderia ser extrapolada para todas as situações de pacientes/cuidadores. No entanto, a experiência foi então interpretada por outro membro do comitê, que levantou uma consideração legal relacionada à história do pai. O membro representando uma organização de serviços de emergência argumentou que uma agência estatal não pode pedir a um civil que quebre a lei, o que foi o que aconteceu. De acordo com o entrevistado, essa intervenção ‘mudou a discussão’.

Como uma questão legal, a aceitabilidade da opção foi reformulada como algo claramente problemático. No contexto da ATS, essa reformulação teve consequências significativas para a interpretação da aceitabilidade da opção. Inicialmente, uma questão de se a opção poderia ser considerada moralmente aceitável foi reformulada como uma questão de aceitabilidade legal como resultado da interação entre diferentes conhecimentos e especialidades das partes interessadas.

Os três casos apresentados neste artigo podem ser resumidos como exemplos para compreender o principal desafio explorado: “Fazer o possível” com o conhecimento do paciente nos processos de ATS envolve fundamentalmente a reformulação – uma reformulação do que está sendo avaliado por meio da posição de diferentes formas de conhecimento e especialidades na ATS:

  • Na avaliação do medicamento, o conhecimento do paciente ajudou a definir os critérios usados para a administração do medicamento, ou seja, o que “a terapia” consiste. Essa interpretação revisada da tecnologia reformulou a consideração de seu valor pelo dinheiro. 
  • Na avaliação do sensor de diabetes, a contribuição dos pacientes reformulou o que é considerado como efetividade. Embora as avaliações na época não tivessem evidências adequadas para apoiar a medida de resultado preferida pelos pacientes, as recomendações buscaram utilizar o conhecimento do paciente de forma “prévia” – adaptar os critérios para determinar a efetividade nas futuras práticas de geração de evidências. 
  • No último caso, a adequação de uma opção de transporte sendo considerada foi reformulada de uma questão moral para uma questão de aceitabilidade por meio de leis. A consequência dessa reformulação foi que a experiência do paciente, apesar de ser um exemplo singular, pôde ser considerada como uma questão genérica de aceitabilidade legal da opção em avaliação.

O aspecto temporal de cada caso é importante para compreender como a reformulação se relaciona com garantir alta qualidade científica na ATS. No primeiro caso, o envolvimento dos pacientes ocorre após o processo de avaliação – durante a ponderação das “evidências” com outros argumentos éticos e sociais. No segundo, o envolvimento reformula o que as futuras gerações de evidências (e, portanto, futuras avaliações de ATS) devem buscar em termos de medidas de resultado – nesse sentido, ocorre antes do processo científico. No terceiro, o envolvimento ocorre durante o processo científico, à medida que a equipe de avaliação analisa e interpreta a base de evidências junto com os pacientes e outros especialistas no grupo consultivo. É importante incluir diferentes perspectivas para modificar a base de evidências e a forma como ela é analisada no processo de ATS.

Discussão

O valor agregado de incluir o conhecimento do paciente na ATS é amplamente reconhecido. Se a contribuição do paciente é realmente necessária para garantir a “maior qualidade científica” em ATS, parece crucial neste ponto considerar o que seria necessário para a ATS lidar com os desafios de integrar diferentes formas de evidência e conhecimento.

Estudiosos e profissionais envolvidos em ATS estão plenamente cientes das tensões levantadas ao incluir e avaliar a contribuição do paciente nas avaliações de tecnologia. Uma variedade de esforços foi desenvolvida para abordar as preocupações metodológicas relacionadas à integração e utilização da contribuição do paciente de forma cientificamente robusta em ATS. Muitos argumentam pela geração de formas mais “robustas” de contribuição do paciente para ATS, como fontes de chamadas ‘evidências do mundo real’, em particular por meio do desenvolvimento de capacidades (por exemplo, dentro de organizações de pacientes) para gerar uma base de evidências mais centrada no paciente. Outros trabalhos têm se concentrado em usar o envolvimento do paciente para delinear questões de avaliação com base em critérios PICO, como identificar resultados relevantes para o paciente. No entanto, devido às complexidades associadas às histórias e narrativas dos pacientes, o envolvimento dos pacientes tende a ser enquadrado como suplementar ou complementar ao processo de ATS, fornecendo contexto e segurança para o processo, em vez de impactar diretamente as recomendações e processos de tomada de decisão da ATS.

Enquanto isso, há pedidos por uma integração mais profunda dos elementos empíricos e normativos das ATS. Essas perspectivas argumentam que as avaliações científicas de tecnologia em saúde precisam lidar com as complexas interconexões de questões técnicas, sociais e éticas levantadas pelas inovações em saúde. As descobertas do artigo fornecem suporte empírico a esses argumentos e podem sugerir como o envolvimento do paciente pode mobilizar uma abordagem integrativa na prática institucional de ATS.

Os achados do artigo destacam como, por meio do envolvimento dos pacientes, o posicionamento de diferentes formas de evidência e expertise lado a lado leva a uma reformulação do que está sendo avaliado em ATS. A reformulação de diferentes parâmetros de avaliação – do que consiste a tecnologia, seus efeitos e sua aceitabilidade, como mostrado nas vinhetas apresentadas – leva à adaptação da base de evidências e à forma como ela é interpretada ao longo do processo de ATS. Dessa forma, pode-se observar como a interação de diferentes perspectivas e conhecimentos das partes interessadas dentro da ATS enfraquece as fronteiras entre análise e julgamento empíricos (ou seja, técnico/científico) e normativos (ou seja, sociais/éticos) de tecnologias em saúde e seu valor agregado.

Embora seja necessário compreender as limitações de tirar conclusões generalistas de casos específicos, conceituar o envolvimento do paciente dessa forma nos ajuda a considerar como a inclusão do conhecimento do paciente pode transformar o processo de ATS em vez de ser complementar a ele. Isso se refere à transformação das bases de evidências relevantes e à forma como a ATS as analisa. Abrir espaço para diferentes contribuições significa que o espaço do problema é compartilhado – entre diferentes atores, conhecimentos e perspectivas que contribuem para a compreensão coletiva do valor da tecnologia em saúde em relação à base de evidências. Essa configuração do envolvimento das partes interessadas na ATS incorporaria uma abordagem mais adaptativa e flexível para a avaliação de tecnologia em saúde, mas o contexto epistêmico e institucional da ATS precisa ser levado a sério em qualquer discussão sobre a transformação dos processos de avaliação.

Para melhorar a conceituação da reformulação transformadora, o papel e o status de outros conhecimentos das partes interessadas, além do conhecimento dos pacientes, serão importantes para investigar ainda mais. Este artigo se concentrou no conhecimento dos pacientes como o principal agente no processo de reformulação, mas como exatamente o conhecimento do paciente é legitimado e mobilizado por meio da contribuição e ações de outras partes interessadas (por exemplo, como atores clínicos e pacientes produziram um protocolo alternativo no caso 1, o que permaneceu ambíguo em nosso conjunto de dados) permanece aberto para exame por meio de pesquisas qualitativas mais aprofundadas sobre os processos de ATS. É aqui que a consideração de outros fatores contextuais será importante. Por exemplo, nesses casos, presumimos que os grupos de pacientes tinham recursos relativamente ricos, em termos de informação, para contribuir para o processo de ATS. Os recursos (acesso) dos grupos de pacientes serão diferentes em contextos diferentes de ATS e envolvimento do paciente. O envolvimento do paciente não equivale à reformulação e/ou impacto, e as razões pelas quais o envolvimento do paciente não faz diferença material nos processos de avaliação também são interessantes de examinar para melhorar nossa conceituação de reformulação por meio da inclusão do conhecimento do paciente em ATS.

Conclusão

As compreensões dos pacientes sobre as tecnologias na prática, em configurações do “mundo real”, se conectam com conhecimentos e expertise clínicos, econômicos e de outras formas na formação das análises da ATS sobre tecnologia em saúde. As implicações de conectar diferentes evidências e conhecimentos – fazer uso do conhecimento do paciente – são que, em diferentes graus, as “avaliações” de tecnologia em saúde são desafiadas, revisadas e reformuladas. Se incluir a contribuição dos pacientes é importante para garantir a qualidade científica na ATS, sem tal compreensão de reformular o que está sendo avaliado, o envolvimento do paciente tenderá a ser subestimado, permanecendo apenas complementar.

Por que indicamos o artigo

  • Apresenta como o conhecimento dos pacientes pode influenciar significativamente a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS), indo além do papel complementar, e transformar o processo de tomada de decisão.
  • Explora as tensões metodológicas e os desafios enfrentados ao integrar a contribuição do paciente nas avaliações de tecnologia, bem como as abordagens utilizadas para lidar com essas preocupações.
  • Descreve casos específicos de avaliações de tecnologia em saúde, nos quais o envolvimento dos pacientes teve um impacto significativo na reformulação das avaliações e na definição do valor das tecnologias.
  • Traz a reflexão sobre a importância de uma abordagem adaptativa e flexível na avaliação de tecnologias em saúde, reconhecendo a complexidade das interconexões entre questões técnicas, sociais e éticas levantadas pelas inovações em saúde.

Cristina (Tina) Guimarães
Políticas públicas e advocacy em saúde

Profissional com sólida formação acadêmica na área de Demografia da Saúde, experiência acadêmica e de pesquisa na área de saúde populacional com grupos de advocacy e quase 10 anos de experiência em trabalhos de pesquisa e consultoria em políticas de saúde no Brasil e no exterior, Tina Guimarães fundou sua própria consultoria em janeiro de 2020. Seu trabalho é centrado nos pilares de ampliação do conhecimento, por meio de cursos e treinamentos, e projetos de consultoria personalizados, centrados no trabalho em rede para a mudança política. 

Tina Guimarães é Bacharel em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutora em Demografia pelo Cedeplar/UFMG e Pós-Doutora pela Universidade de São Paulo. É também professora de Políticas de Saúde no MBA de Economia e Avaliação de Tecnologias de Saúde da FIPE. Dentre suas experiências anteriores como docente ainda estão: EAD em Políticas de Saúde no MBA de Pesquisa Clínica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (PROADI-SUS); Professora no MBA de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (PROADI-SUS),no MBA de Gestão Atuarial da FIPECAFI e professora de Demografia no Curso de Ciências Atuariais da Universidade de São Paulo.

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Profissional com sólida formação acadêmica na área de Demografia da Saúde, experiência acadêmica e de pesquisa na área de saúde populacional com grupos de advocacy e quase 10 anos de experiência em trabalhos de pesquisa e consultoria em políticas de saúde no Brasil e no exterior, Tina Guimarães fundou sua própria consultoria em janeiro de 2020. Seu trabalho é centrado nos pilares de ampliação do conhecimento, por meio de cursos e treinamentos, e projetos de consultoria personalizados, centrados no trabalho em rede para a mudança política. 

Tina Guimarães é Bacharel em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutora em Demografia pelo Cedeplar/UFMG e Pós-Doutora pela Universidade de São Paulo. É também professora de Políticas de Saúde no MBA de Economia e Avaliação de Tecnologias de Saúde da FIPE. Dentre suas experiências anteriores como docente ainda estão: EAD em Políticas de Saúde no MBA de Pesquisa Clínica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (PROADI-SUS); Professora no MBA de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (PROADI-SUS),no MBA de Gestão Atuarial da FIPECAFI e professora de Demografia no Curso de Ciências Atuariais da Universidade de São Paulo.

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