É hora de falar sobre Saúde em Todas as Políticas

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As discussões em torno de ações para mitigação dos impactos do coronavírus são amplas. Poucos dias antes de deixar o cargo de Ministro da Saúde, Mandetta comentou, em uma das entrevistas coletivas diárias, que a conta de todos os problemas do país estava recaindo sobre a saúde. Questões relacionadas à superlotação dos transportes públicos, aglutinamento de pessoas em moradias precárias e baixos níveis de saneamento foram colocadas como entraves ao sucesso das medidas para redução da disseminação do vírus, embora sejam problemas que transcendem a responsabilidade direta da pasta da saúde.

O que foi exposto na fala do agora ex-ministro é algo que está na agenda da Organização Mundial de Saúde (OMS) há algum tempo: a ideia de que a pauta da saúde deveria ser incorporada a políticas de setores que extrapolam sua esfera imediata.

Mas o que significa exatamente Saúde em Todas as Políticas?

O termo Saúde em Todas as Políticas (ou Health in All Policies – HiAP) é uma abordagem colaborativa que integra e articula decisões políticas em diferentes setores levando em consideração suas consequências para a saúde da população e da sociedade em geral. Ou seja, reconhece que a saúde é determinada por uma multiplicidade de fatores que vão além do próprio setor e atividades relacionadas.

O termo tem sua origem na Declaração de Alma Ata, em 1978(1) e foi posteriormente discutido em outros contextos, como na declaração do governo da Noruega em 1987, de que a saúde deveria ser incluída em todas, até a Declaração de Adelaide, em 2010, que mostrou um panorama da abordagem com um chamado para ação de líderes de todos os níveis de governo. Na Declaração dos Determinantes Sociais da Saúde, encontro promovido pela OMS no Rio de Janeiro em 2011, foi afirmada a legitimidade da Saúde em Todas as Políticas como uma abordagem para aumentar a prestação de contas entre setores para a saúde e oferecer um guia para o desenvolvimento inclusivo, produtivo e equitativo de sociedades.

Histórico de iniciativas sobre a abordagem Saúde em Todas as Políticas

Fonte: Rudolph, L., Caplan, J., Ben-Moshe,K., & Dillon, L. (2013). Health in All Policies: A Guide for State and Local Governments.
Washington, DC and Oakland, CA: American Public Health Association and Public Health Institute. Disponível aqui

No Brasil, este tema ganhou relevância em 2013, com criação de grupos de trabalho e organização de eventos internacionais com apoio da OMS e Organização Panamericana de Saúde (OPAS). Além disso, o país participou de outras iniciativas promovidas pela OPAS no âmbito da implementação do seu Plano de Ação de Saúde em Todas as Políticas na região das Américas para o período de 2014 a 2019. Entretanto, não se vê atualmente muita discussão dessa abordagem no contexto nacional.

O governo da Austrália do Sul talvez seja um dos exemplos mais bem sucedidos da incorporação dessa temática em sua governança. Introduzido em 2007, tem o apoio do governo central, e uma estrutura que abarca o compromisso e parceria de todas as agências governamentais, além de um forte processo de avaliação(2) .

Até mesmo os Estados Unidos, com um sistema de saúde tão fragmentado, reconhecem a necessidade de se adotar a Saúde em Todas as Políticas. A Associação Americana de Saúde Pública deste país tem uma página em seu website dedicado ao assunto, e um guia para incorporação dessa abordagem nas políticas estaduais e municipais.

De forma geral, os guias que tratam do assunto colocam uma série de princípios que deveriam ser observados ao incluir a Saúde em Todas as Políticas na estrutura de governança:

  • Reconhecer o valor da saúde para o bem-estar de todos os cidadãos e para o desenvolvimento social e econômico;
  • Reconhecer que a saúde é resultado de uma ampla gama de fatores, muitos dos quais estão fora das atividades primordiais da saúde e, por isso, necessitam de responsabilidades compartilhadas e integradas entre áreas do governo;
  • Compreensão de que políticas governamentais podem ter resultados positivos ou negativos para a saúde e para seus determinantes, com consequências atuais e futuras, e de forma desigual entre populações;
  • Entendimento de que a pressão exercida pelos problemas da saúde da população requer políticas de longo prazo e compromisso orçamentário, assim como formas inovadoras de dotação orçamentária;
  • Reconhecer a necessidade de consultar regularmente os cidadãos para que a mudança política tenha sinergia com questões culturais e sociais que levem em conta saúde e bem-estar;
  • Reconhecer a possibilidade e necessidade de colaboração entre diferentes níveis e áreas do governo, academia, setor privado, organizações profissionais e sociedade civil para mudança sustentável.

Ao adotar esses princípios em suas políticas, os governos também contribuem para um desenvolvimento mais sustentável, uma vez que todos os setores estariam pensando suas ações de forma interconectada, e levariam em consideração os impactos sobre a saúde.

O que a pandemia trouxe foi uma oportunidade de olhar de forma mais ampla para outras políticas que possuem grande impacto sobre a saúde, deixando evidente  a necessidade de que ela esteja em todas as discussões. Podemos listar alguns exemplos de desafios que intensificam as questões de saúde:

  • deficiências na rede de transporte provocam aglomerações de pessoas, com maior suscetibilidade ao vírus;
  • saneamento precário expõe a vulnerabilidade de pessoas;
  • déficit habitacional e grande adensamento populacional torna muito mais difícil o tão solicitado distanciamento social;
  • alta informalidade do mercado de trabalho expõe os já vulneráveis a maior risco de infecção;
  • problemas na logística de produção revela a dificuldade do país em atender demandas de forma rápida;
  • baixo investimento em tecnologia e pesquisa (não apenas na saúde) impede, dificulta ou prolonga o encontro de soluções que dialoguem com a realidade nacional e local

Colaboração intersetorial em benefício da saúde

A HiAP promove a melhoria dos resultados de saúde e equidade por meio de políticas intersetoriais. A colaboração intersetorial no setor público com efeitos positivos sobre a saúde já existe. É o caso das medidas que levaram à obrigatoriedade do uso do cinto de segurança para prevenir acidentes ou das restrições ao uso do tabaco para reduzir problemas causados pelo consumo ativo ou passivo de cigarros. Ambos são exemplos de considerações de saúde como fator de decisões políticas com efeitos positivos.

A pandemia só lançou luz a uma discussão que deveria ser fortalecida. Olhando apenas para os efeitos imediatos da epidemia, é possível perceber que políticas de transporte, infraestrutura, do mercado de trabalho, social, ciência e tecnologia, educação, têm um profundo impacto sobre a saúde da população – por afetarem diretamente a saúde e seus determinantes – e sobre o sistema de saúde.

E não há nada novo aqui. A revolução sanitária no início do século XIX reconheceu que as maiores ameaças à saúde da população eram causadas mais por fatores ambientais do que por problemas médicos. Melhoria na higiene, condições de trabalho e moradia, introdução de sistemas de saneamento e garantia de oferta de água potável e alimento contribuíram enormemente para melhores resultados em saúde.

A Covid-19 veio nos mostrar que o olhar para a saúde importa – e muito – para todos. Além disso, nos mostra que a mitigação dos riscos em distintos setores passa também por um olhar sobre a redução dos riscos para a saúde, e que uma resposta efetiva à própria epidemia e suas consequências para a sociedade requer governança compartilhada e instrumentos políticos intersetoriais. O engajamento e colaboração com atores fora da esfera pública é bem-vindo e necessário, para a discussão dos problemas e soluções, e para que o setor produtivo seja capaz de  inovar em iniciativas que promovam benefícios mútuos.

Da mesma forma que, no passado, outras doenças infecciosas como cólera e tuberculose moldaram os lugares onde vivemos, por meio da arquitetura, design e planejamento urbano, a Covid-19 evidencia que a colaboração entre distintos setores e o olhar ampliado e interdisciplinar para os problemas do país são o melhor caminho para o enfrentamento de questões que atingem a todos, e que impactam todos os negócios.


[1] Documento síntese da Conferência Mundial de Saúde promovida pela OMS e um marco no estabelecimento da saúde como um direito humano fundamental e frequentemente citado como o primeiro reconhecimento da importância da ação intersetorial na saúde.
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[2] Em geral utiliza-se a metodologia de Health Impact Assessment (HIA) para se antecipar aos impactos de determinadas decisões sobre a saúde e, em muitos lugares, a utilização dessa metodologia é compulsória, especialmente para projetos ambientais.

Cristina (Tina) Guimarães
Políticas públicas e advocacy em saúde

Profissional com sólida formação acadêmica na área de Demografia da Saúde, experiência acadêmica e de pesquisa na área de saúde populacional com grupos de advocacy e quase 10 anos de experiência em trabalhos de pesquisa e consultoria em políticas de saúde no Brasil e no exterior, Tina Guimarães fundou sua própria consultoria em janeiro de 2020. Seu trabalho é centrado nos pilares de ampliação do conhecimento, por meio de cursos e treinamentos, e projetos de consultoria personalizados, centrados no trabalho em rede para a mudança política. 

Tina Guimarães é Bacharel em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutora em Demografia pelo Cedeplar/UFMG e Pós-Doutora pela Universidade de São Paulo. É também professora de Políticas de Saúde no MBA de Economia e Avaliação de Tecnologias de Saúde da FIPE. Dentre suas experiências anteriores como docente ainda estão: EAD em Políticas de Saúde no MBA de Pesquisa Clínica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (PROADI-SUS); Professora no MBA de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (PROADI-SUS),no MBA de Gestão Atuarial da FIPECAFI e professora de Demografia no Curso de Ciências Atuariais da Universidade de São Paulo.

Cristina (Tina) Guimarães
Políticas públicas e advocacy em saúde

Profissional com sólida formação acadêmica na área de Demografia da Saúde, experiência acadêmica e de pesquisa na área de saúde populacional com grupos de advocacy e quase 10 anos de experiência em trabalhos de pesquisa e consultoria em políticas de saúde no Brasil e no exterior, Tina Guimarães fundou sua própria consultoria em janeiro de 2020. Seu trabalho é centrado nos pilares de ampliação do conhecimento, por meio de cursos e treinamentos, e projetos de consultoria personalizados, centrados no trabalho em rede para a mudança política. 

Tina Guimarães é Bacharel em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutora em Demografia pelo Cedeplar/UFMG e Pós-Doutora pela Universidade de São Paulo. É também professora de Políticas de Saúde no MBA de Economia e Avaliação de Tecnologias de Saúde da FIPE. Dentre suas experiências anteriores como docente ainda estão: EAD em Políticas de Saúde no MBA de Pesquisa Clínica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (PROADI-SUS); Professora no MBA de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (PROADI-SUS),no MBA de Gestão Atuarial da FIPECAFI e professora de Demografia no Curso de Ciências Atuariais da Universidade de São Paulo.

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